O dia depois da festa
O trabalho “Estudo”, de 2020, estruturado em formato vertical, apresenta em sequência três balões: um vermelho, um marrom claro e um mais escuro. Longe de estarem dispostos em suas formas e cores mais exuberantes e atrativas, como são tradicionalmente empregados em eventos e festas, aqui aparecem em pequena dimensão e algo murchos, com o mais opaco na parte superior, e o mais luminoso na inferior. A concentração de matéria pictórica escura muito próxima em torno dos mesmos os coloca em ambiente sólido, gorduroso, que não lhes permite a fluidez atmosférica pela qual são caracterizados. A paleta cromática do trabalho é mais terrosa. A velocidade da pincelada, todavia, sugere algo dinâmico.
Esses balões, que um dia possivelmente vibraram em festas e céus, agora estão esgotados, envelhecidos e disfuncionais. O que antes era volume e fluidez parece se converter em peso e lentidão. A predominante paleta marrom do trabalho tem um tom muito aproximado do sangue oxidado. Tal tecido, antes de se oxidar e amarronzar, permanecendo no suporte quase eternizado, trazia antes luminosidade e trânsito contínuo. O trabalho de Julia Pereira fala sobre o ciclo de morte e vida das coisas. Nesse sentido os balões, da forma como estão dispostos, podem enunciar tanto uma caminhada rumo ao fim da festa quanto a possibilidade de realizar uma nova a partir de matéria usada. De tamanhos quase idênticos, não se apresentam de maneira hierárquica perante o espectador, podendo ser lidos em qualquer sentido.
O ponto de partida da artista foi a pintura de retrato, cuja função original era de eternizar rostos e personalidades existentes. Conforme o tempo foi passando e Julia investigando novas potencialidades e caminhos pictóricos, o retrato antes realista e algo nítido foi se tornando derretido, desmembrado e vestigial, perceptível talvez por alguns contornos mais marcantes. Como narrado pela própria, foi tornando-se impossível um retorno completo ao retrato figurativo, dado que a pintura parecia caminhar por conta própria. A persistência da parte da artista para, ainda assim, imprimir algo existente no universo extra-pictórico no campo da pintura, se faz presente através de adensamentos pictóricos, por vezes em áreas centrais das composições. Enquanto a matéria pictórica luta para dissolver, a artista luta para criar.
Se no retrato o objeto está muito mais próximo do abstrato, no campo da natureza morta e da paisagem a realidade comparece mais visível, porém através de gradações tonais quase narrativas. As aquarelas “Estudo Piscina Auroras”, tem caráter liquefeito. Através de diferenças tonais, Julia cria jogos de oposição. Em uma delas, dividida em uma quase diagonal, temos, de um lado, uma paleta de luminosos tons de verde e azul, fazendo o papel de vegetação e céu. O adensamento dessa parte se contrapõe a fatura rala da piscina do outro lado, marcada por tonalidade sombria, porém textura líquida. O contrário ocorre em outra: dessa vez, o adensamento pictórico se dá no escuro fundo da piscina, ficando a paisagem externa mais diáfana e fugidia. Existe aqui uma disputa entre o claro e o escuro, o opaco e o luminoso. O brilho da paisagem iluminada pode se apagar, e o adensamento pictórico pode se liberar em algo etéreo. Ainda que algumas cores de seu trabalho remetem à morte e ao fim, esses encerramentos são fundamentais para o reinício. A morte do ente orgânico é o que permite fertilizar a terra. Um novo ciclo pode se iniciar com o fim de um anterior. Como o dia seguinte ao fim de uma festa, na qual existirá tanto o luto pelo findado evento como uma aventura nova a ser explorada.
Theo Monteiro, Maio 2022