O ar que eu não seguro
O ato de pintar é íntimo, o gesto é indício de existência e é através deste que se materializa a correspondência psíquica entre o artista e o trabalho. A ligação entre mente, corpo e pincel é direta e constante. A integração entre o ser e o fazer resulta em uma Forma que apresenta uma espécie de existência própria, que exala uma qualidade vital.
A força para pintar vem do desejo pela matéria-tinta e a raiz da pintura é a memória autobiográfica. O processo se dá mediante uma ligação forte entre a lembrança de algo vivenciado, pactuado com reações corpóreas e psíquicas sobre aquilo. A imagem já vive dentro de mim e é durante este tempo de elaboração que procuro traduzir a sensação que me atravessa e se exterioriza. O início é calmo, lento e aos poucos ganha agilidade, respiração curta e coração acelerado. Percebo o vão entre a paleta e a tela e o embate com o trabalho fica intenso, às vezes agressivo. Tinta e gestos são adicionados ou retirados: às vezes ataco a pintura com força como se, ingenuamente, isso fosse me levar a algum resultado construtivo. Atinjo um clímax e logo vem uma sensação de exaustão e esfriamento. A esta altura, sinto um esvaziamento energético. Um tipo de vazio que ao longo do tempo resultou em um respiro e um campo mais aberto, no qual os traços inacabados tentam suspender o tempo. Minha incapacidade de capturar algo que sempre escapa me faz retornar à tela e assim o diálogo pictórico começa.
Julia Pereira,
Fevereiro 2022
1- PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. [S.l.]: Vozes, 1993. 326 p.