O espanto do corpo no desfiladeiro da pintura
A obra de Julia Pereira é a expressão viva da ideia de “pintura encarnada”, que Georges Didi-Huberman estabeleceu em um belíssimo ensaio, uma densa reflexão sobre a pintura feita com jorros de cor e a exigência da carne, na profundidade e na superfície do gesto de pintar. Seu processo de pintura, físico e psíquico, acontece nesse tempo da aparição e da ressonância corporal. Ao pintar, seu corpo encarna o aditamento da fascinação e a tela revela, como um Santo Sudário, o lugar de errância que abriga os despojos que a artista arranca de si: profundidade e transparência, forma e dobra, a substância espectral do desejo e a consciência dilacerada. Cada trabalho desvela uma imagem que explode e gera um turbilhão de relações com outras imagens, vestígios e inquietudes.
Sua relação com a pintura se deu por abertura, encantamento e assombro. Da infância como mágica ao ensino médio, através do autorretrato e do espanto com as angulações dos rostos, algo irrompe como desejo. Das pinturas do próprio rosto ela se desloca ao outro e à densidade do corpo, como um enigma que hesita, treme, se desmancha e explode. Seu trabalho se configura como uma espécie de escrita como a evocada por Maurice Blanchot, para quem escrever é lidar com essa “imagem que é tremor, que oscila e vacila, dentro e fora de forma incessante e interminável”.
As cores irrompem de forma visceral. Saltam da memória para o quadro invocando uma outra cena: a presença poética da cor de uma parede, um tapete, uma toalha, um lençol ou o céu de um dia específico, os olhos ou as roupas de alguém. A cor é pulsação de vida e de morte, abrigo das coisas perecíveis e infinitas. Pela presença de um ou outro grupo de cores pode-se sentir a temperatura afetiva e a presença tátil e psíquica da artista, que estabelece aí um fulgor que conjuga fascinação e movimento pulsional.
Maurice Blanchot escreve também que “os torsos realizam-se porque o tempo estilhaçou as cabeças”. É essa dimensão fragmentária do corpo que comparece em muitas obras que humanizam o informe e o inacabamento, produzindo a interminável escansão de uma beleza extrema, inextricável. Seu gesto de artista persegue a possibilidade de reter o impossível e dar-lhe um destino, que se materializa em obras como “Habitar a passagem”. O conjunto das formas dramáticas e teatrais evoca a presença de uma carnalidade movimentada pelo desejo incorporado na matéria da tinta: é a espessura pulsátil que cria volume e textura e revela a impermanência do tempo, a efemeridade e a fragilidade, o palpável e o intangível. Já em “Vida-morte-vida” temos os eixos da tensão. Vida e morte, presença e ausência retornam como um trabalho de luto que dá sentido ao insondável conjugando choque, magnetismo, sedução e aversão.
Os objetos de estudo saltam do mundo e seu olhar sensível captura o tremor da efemeridade no desejo de reter a cena: balões amarrados, pendurados no ateliê sobre o cavalete, viram objetos de contemplação estética de onde derivam desenhos de observação, fotografias e recortes de uma matéria que evoca corpos, cabeças ou vísceras. À medida que os balões murcham e se grudam, a plasticidade vai se modificando, criando um novo corpo.
A estrutura barroca de seu pensamento corporal encontra-se em diálogo com Severo Sarduy, que sustenta uma espécie de vertente neobarroca, responsável pela revitalização de traços do barroco na contemporaneidade. Em gestos e cores de um corpo que é também tecido e nas metamorfoses que daí derivam, Severo Sarduy funda, assim como Julia Pereira, um estilo de escrita que se erige na voragem do barroco, mesclando campos distintos, das artes às ciências, da biologia à poesia.
Dessa matéria mestiça a artista afirma tanto sua singularidade e o campo do afeto como também estabelece sua relação viva e visceral com a pintura, como a cena retratada em uma de suas mais cruas e belas pinturas: o avô no leito de morte, mergulhado no infinito de um lençol azul. No hospital, o avô, que era médico cirurgião gastrointestinal, dorme pacificamente sob cobertores e lençóis azuis-claros. Os tons claros da cama e da parede, em contraposição com o rosto, a única forma de cor mais saturada, remetem às pinturas de Lucian Freud, com o corpo em sua vertente pulsional, entre o desamparo biológico e a linguagem. Aquela cena se oferecia à artista, pedindo passagem em um trabalho de luto e elaboração, lembrando a “Série Trágica” em que Flávio de Carvalho, como uma possibilidade de lidar com o insondável, retrata seu espanto diante da imagem da mãe, nos últimos dias de sua vida.
O impossível de ser representado, o que se vê e o que não se vê, estão nas telas “O fundo da piscina”, “Petites morts” e “Limites corpóreos”. Na performance “Uma dessas linhas é você” o gesto na pintura se transfigura em máxima expansão: em um projeto de ocupação de um apartamento vazio, a artista explora a conexão do seu corpo com a pintura e as memórias com o avô cirugião. Deitada em uma cama, ela reintroduz o corte do bisturi de outro ponto e encontra espaço entre as formas e as costelas para formar ossos e músculos e reescrever seu corpo. Ao separar matérias e reinventar fronteiras uma pintura – agora expandida – encontra seu espaço.
O sentimento oceânico da visão dos lençóis azuis cobrindo o corpo do avô se estende a seu trabalho, como uma maneira de dar forma ao real que daí irrompe. A atmosfera – ao mesmo tempo onírica e carnal – de suas obras tem espessura e camadas, e podem se derreter ou se adensar em uma cartela cromática de tons terrosos que remetem a veias e vísceras. O quente e o frio – a escala de verdes, azuis ou amarelos – e o choque entre mundos são as linhas agudas e cortantes por onde pulsa o trabalho da artista. Por isso insisto no espanto: a força motriz de toda convocação que Julia Pereira coloca em cena tem a mesma potência que move Francis Bacon, Lucien Freud, Egon Schiele, Munch e até Maria Martins, com suas formas assombradas e convulsivas.
O que se inventa e se forja aqui como arte é a invenção diante do inexplicável. É uma autópsia que revira corpos. Cada fragmento possui vida e sentido próprios. Memórias e paisagens são encenadas: o bisturi disseca o corpo, o pincel se torna bisturi. Eros e Tânatos se chocam, fazendo lembrar que a intensidade, a energia e a violência são motores essencias nessa construção. É a verdadeira tensão poética, artística e criativa perfurando o mundo e inventando um novo destino, fazendo lembrar a poesia de Herberto Helder: “Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda em palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. E o poema faz-se contra o tempo e a carne”.
Bianca Coutinho Dias,
Setembro 2022